Seja atrevido, não se arraste, olhe nos olhos e aprenda a desrespeitar!

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A voz

Terça-feira à noite. Estação da Luz.
Os pés separados por uma pequena distância. Mochila no ombro esquerdo, segura por uma das mãos, a mochila que sempre o acompanha e a outra mão no bolso da jaqueta.
Espera. Sem grande interesse, observa os trilhos, perde-se em pensamentos. Afinal, tantas coisas aconteceram nesses anos. Lembra-se da infância e todo o percurso que o levou até seus vinte e seis anos. Crescer não foi tão legal quanto esperava. Não lhe prepararam para crescer, para mudar, para ser adulto. O prepararam para vencer, para ser o melhor, para ser especial e tudo de bom acontecer com ele. Sente-se enganado. Mentiram para ele a vida inteira. Seu pai, sua mãe, professores, todos, cada um com sua mentira. As coisas não aconteceram como disseram que aconteceria.
Espera.
Crescer não é tão legal.
O trem chega.
Ele observa as portas se abrirem automaticamente e sente algo estranho. Por um instante ele olha para as portas com o canto dos olhos, segue em frente e procura um lugar para sentar. Havia pouca gente no vagão. Senta-se próximo a uma janela e, com a mochila sobre as pernas, vasculha-a a procura de um livro. No entanto, esqueceu o livro em algum lugar, tenta lembrar, mas logo desiste e resolve continuar só com seus pensamentos, retomando aquele sentimento de decepção em crescer. Mas uma voz o tira violentamente do meio de seus pensamentos.
Ele olha ao redor, algumas pessoas dormem sentadas, outras leem. Procura entre os passageiros quem disse aquilo, mas todos parecem apenas esperar chegar sua vez de descer.
Achou tudo muito estranho, olhou pela janela para dentro da noite e mergulhou de novo em seus pensamentos.
Seu pai um dia lhe falou que ele poderia ser o que quisesse. Disse que teria filhos. Que ganharia dinheiro o suficiente para realizar seus sonhos. Parecia tão fácil nas palavras dele. Realmente, gostaria que fosse mais fácil.
Ouve de novo.
A mesma voz o pegou num sobressalto. Procura ao redor novamente, todos parecem sequer ter ouvido. Mas ele ouviu. Com certeza. Algumas pessoas entram no vagão e ele passa a sentir-se esquisito. De quem era aquela voz?
Sua mãe sempre lhe dizia que é especial. Único. E ele sentia que, por isso, que tudo aconteceria para ele. Mas as coisas não acontecem, ele precisa correr atrás, suar, se sacrificar para que tudo aconteça. Ele precisa fazer acontecer. Aos poucos aprendeu isso.
Dessa vez ele levantou do banco. A voz. Começa a encarar todos a sua volta. Nada. Senta-se de novo, um pouco envergonhado, algumas pessoas lançam olhares, sentiu-se muito estranho.
Segurava a mochila e, discretamente, olhava para os outros passageiros com desconfiança.
A voz aparecia e sumia. Dizia poucas palavras. A cada vez ele ouvia apertava mais a mochila contra o peito e encolhia no banco, tentando não demonstrar o pavor que começava a dominá-lo.
Aquela voz apareceu mais seis vezes. Já suava frio quando o trem diminuiu a velocidade e parou numa estação. Não aguentou. Levantou, correu em direção à porta e saltou para fora do trem. Desviou de algumas pessoas, atravessou a plataforma e, enquanto as portas de outro trem começam a se fechar, espremeu-se entre elas e sentou-se num banco ao fundo do vagão.
Respiração ofegante. Pensou: “Consegui”.
O trem parte, ele percebe que está sozinho no vagão e uma sensação de alívio passa por ele enquanto sua respiração começa a voltar ao normal.
De repente a voz de novo. Ele entra em pânico. Não consegue entender. O trem pára. As portas se abrem. Seus olhos arregalam-se a espera de quem alguém entre. Ninguém. Apenas o vento frio da noite. E o trem parte novamente.
A voz reaparece mais duas vezes e em cada vez seu medo aumenta e ele vê as portas se abrirem e pensa em sair do trem, mas hesita e elas se fecham. Na terceira vez ele mal espera a porta se abrir. Lança-se fora do trem, correndo, cambaleia, retoma o equilíbrio e tenta correr o mais rápido que pode. Sai da estação, tropeça na escada e cai de costas. Ainda no chão, olha para cima onde lê as palavras “Estação Jundiaí”.
Está em casa.

Baseado na música “Metrô” – Rogério Skylab

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