Seja atrevido, não se arraste, olhe nos olhos e aprenda a desrespeitar!

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Disputa

Uma noite dessas resolvi ligar para minha amiga Ana que não via há algum tempo. Coincidentemente havia uma reunião de amigos na casa dela onde, entre os presentes, estavam outras pessoas que eu não via há bastante tempo. Ela me convidou para ir lá e rever todo mundo. Aceitei.
O papo estava bom até perguntarem a um amigo sobre sua saúde. Todos sabiam que ele havia passado por uma cirurgia recentemente e ainda estava se recuperando:
- Como você está agora Miguel?
- Estou bem, minha recuperação está sendo rápida e talvez meu tratamento seja mais leve daqui pra frente. Estou só esperando os resultados de uns exames...
 De repente foi interrompido por um cara que eu não conhecia que começou a falar da própria experiência:
- Ah passei um perrengue com a minha mãe, também. Uma noite fomos comer fora e, no dia seguinte ela acordou com uma dor na barriga muito forte e tive que correr com ela para o hospital. O problema era no pâncreas. Os médicos estavam quase desistindo dela. Ela se recuperou por pouco, mas ainda hoje ela... – O cara falava de uma maneira que fazia parecer que o rapaz havia tido só uma gripe.
Miguel ouviu o cara atentamente até que ela terminasse sem falar nada. Interromper as pessoas enquanto falavam sempre pareceu algo repugnante para ele.
Quando terminou de contar sobre a doença da mãe o cara se levantou e foi conversar com outra pessoa. A Ana então perguntou:
- Miguel, mas como aconteceu? Como você descobriu? Aliás, o que você teve?
- Eu comecei a me sentir um pouco fraco – começou o Miguel, de novo – e um dia eu fui trabalhar, mas quando cheguei lá todos que me olhavam me diziam para ir a um hospital, minha cara não estava boa, estava mal..
- Eu também passei mal no trabalho essa semana – era uma das amigas da Ana – eu trabalho na prefeitura e participei da organização do desfile militar do feriado nacional. O Sol estava muito forte durante o desfile e nos deixaram sem água. Acredita? Bebi água escondido que uma moça da outra equipe me deu. Tive que correr atrás de água para uma senhora grávida que estava lá quase passando mal, consegui dois copos de água pra ela. Uma vergonha. Ela só bebeu água por minha causa...
Meu celular tocou e saí para atender. Era outra amiga:
- Oi Renata, tudo bem?
- Bem, estou passando perto da sua casa, minha mãe está com visitas e não estou afim de ir pra lá agora.
- Eu não estou em casa. Estou na casa de uma amiga com um pessoal que não via há algum tempo.
- Ah tá, a gente se fala.
A mulher ainda falava do desfile, do calor e de como salvou a grávida dando-lhe copos de água. Meia hora mais tarde o celular toca de novo:
- Oi.
- Oi Renata.
- Estou no bar Tribos, tem uma banda legal tocando.
- Que bacana! Ainda estou aqui com uns amigos.
- Encontrei uns amigos aqui também. Está muito divertido aqui. Legal mesmo. A gente se fala depois, Tchau.
- Tchau.
Agora outra mulher falava sobre como sua vida foi difícil sem ter um pai.

Eu já sabia o que havia acontecido com o Miguel, fui visitá-lo no hospital e conversamos bastante. Foi uma barra, um período muito difícil pra ele. Mas percebi que ele não fazia questão de que as pessoas soubessem de tudo o que aconteceu, também não escondia, se alguém lhe perguntava ele contava tudo o que queriam saber. Mas ali ninguém queria realmente ouvir sobre o Miguel. As pessoas se dividiam em quem queria se autopropagandear, falar de si mesmo, chamar a atenção e tentar fazer com que todos achem sua vida tão interessante quanto ele mesmo achava, e quem apenas queria ouvir alguém falando para poder colocar sua importante opinião sobre o assunto que estivesse em pauta, seja ele qual for.
Fiquei pensando sobre como é escancarada essa disputa as pessoas por atenção, seja pelos acontecimentos em suas vidas, seja por seus pensamentos. Todos ali, exceto o Miguel, disputavam cada segundo da atenção dos demais, o que me fez chegar à conclusão de que não havia ninguém ouvindo, não havia diálogo, havia vários monólogos ocorrendo simultaneamente. Cada um tentando mostrar que sua vida é mais interessante ou mais intensa seja por dificuldade, tristeza, coragem, superação, qualquer coisa, seja por sua mente brilhante já nascida com a capacidade de discorrer e opinar sobre qualquer assunto que possa surgir.
É estranha essa necessidade das pessoas de mostrar que, de alguma forma, merecem estar em evidência, ser notado, pois suas vidas são especialmente diferentes, principalmente na intensidade das coisas. Se disser que sofreu, elas sofreram mais. Se disser que superou algo ruim, elas superaram coisa pior. Se disser que se divertiu, elas foram além da diversão. Se estiver bem, elas estão melhores. Se estiver mal, elas estão quase morrendo. Nada do que você faz é tão intenso quanto o que ocorre com elas. E elas precisam mostrar isso a você, não podem ficar por baixo nessa disputa, mesmo que você não esteja disputando. Elas precisam que você saiba o quão especiais elas são e que você jamais irá superá-las.
Comecei a ficar entediado com aquele jogo de “quem é mais que quem” e resolvi ir embora.
- Pode me dar uma carona? – disse o Miguel – também já vou.
- Claro, vamos lá.
No carro falei:
- Saiu cedo também, tem outro compromisso?
- Que nada, não aguentava mais aquele papo. Todo mundo se atropelando pra falar. Não aguentei.
- Somos dois então. Ninguém conversa, só ficam falando, falando, falando...
- Pois é.
- Tenho uns filmes do Chaplin em casa, tá afim de assistir?
- Claro. Adoro o Chaplin.


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